sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Autópsia da espera

Não foi possível identificar a causa da morte, ele disse. 

É quase tangível que morreu tentando. Há marcas dessas tentativas para onde quer que se olhe. Estava em decúbito dorsal, mas não como quem espera e sim como quem não teve tempo de continuar.

Foram descartadas causas naturais. Viveu violentamente, impingia-se sobre as coisas. Quanto mais se desejava ver tais coisas, mais ela crescia e se impunha. "No meu tempo", ela dizia.

Não exalava cheiro. Arrisco que, se houvesse, seria de amônia. Amônia tem cheiro de coisa que coisa que não passa despercebida, mas que ao mesmo tempo não se nota. 

Se tivesse olhos, estariam abertos. Surpresos, pasmos, talvez arregalados. Suspeito que não esperavam que a morte estivesse à espreita.

Se tivesse mãos, estariam agarradas a algo. Ela não desistiria com facilidade de sujeitar os outros à sua presença, lutaria até o fim pelo direito de permanecer.

Se tivesse hematomas, haveria vários, por todo o corpo. Todos nós, em algum momento, já batemos nela, já desejamos sua morte, já quisemos enviá-la para bem longe.

Não era muito bem quista. Os corredores e cadeiras de hospitais que o digam, a conheciam muito bem. Os aeroportos, supermercados, órgãos públicos, mais ainda.

Em todo lugar alguém lembrava dela de um modo. Ora como uma visita inconveniente que se nega a ir embora, ora - e isso acompanhada de riso contente - como uma doce semente a crescer na barriga.

Ela andava pendurada na corcunda de muita gente e por isso deixou inimizade em tudo quanto é canto. Às vezes, como doença hospedeira, sugava e fazia o corpo alojado padecer até o fim.

Avisem nas rádios, revistas, contem para os vizinhos, crianças, padres e policiais. Chamem os familiares, os idosos, gestantes, palhaços e os animais.

Morreu a espera.

De morte matada, não de morte morrida.

Procura-se o assassino e desconfiam que seja ele: o apaixonado. Não aguentou carregar a espera pela volta da amada, tratou logo de dar um jeito na situação. Com arma em punho e coragem no peito, chamou-a para o embate e mostrou ter culhão.

Livrou a cidade, o país, a nação.

Espalhem aos sete cantos que a espera bateu as botas.

Agora todo mundo é livre pra amar sem dilação. 

Todos agiram em comunhão. Apaixonado é louco, age em bando e dispensa qualificação. Sem fiança, sem advogado, sem delegado, sem processo, sem juiz, sem condenação.

A única coisa que importa é o perfume no cabelo do objeto de adoração.

Prescreverá o crime sem nem investigação.

É que a causa mais nobre de todas é agir pela paixão.

E preso já está o acusado, mas pelo coração.



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